Entrevistas

“Em Portugal, ou noutro sítio qualquer, eu seria só mais uma no meio de milhares”

Estrela Matilde

A portuguesa Estrela Matilde nasceu em  23 julho de 1985 em Santiago do Cacém, mas foi no Alentejo Litoral que cresceu. Em 2013 deixou Sines e mudou-se para a Região Autónoma do Príncipe, onde dirige a Fundação Príncipe Trust.

Formada em Biologia e com mestrado em Conservação Biológica, Estrela actua no desenvolvimento sustentável e na conservação da natureza.

Foi a primeira oradora do TEDxSãoTomé a ser anunciada para a sua quinta edição que acontece este ano, a 29 de Setembro, no Museu Nacional.

“Existia a Estrela Matilde antes da Ilha do Príncipe e hoje existe a Estrela Matilde depois da Ilha do Príncipe.” É assim que a bióloga descreve o impacto da sua mudança para a Região Autónoma do Príncipe na sua vida.

“Esta Ilha tem-me moldado ao que sou hoje, e todos os dias este pequeno paraíso é uma escola gigante onde eu cresço, não só profissionalmente, mas pessoalmente. Apesar do conceito geral de que é um sítio frio (com pouco movimento) – é verdade que muitas vezes ficamos frustrados porque não podemos ir ao cinema, ou jantar a um sítio novo, ou conduzir sem destino – mas tudo isto é tão desnecessário e secundário quando nos sentimos em casa, com família de coração, e as pessoas mais sortudas do mundo por podermos aqui estar. Aqui consegui encontrar o amor – é verdade – amigos de verdade, consegui criar projetos também pessoais – a Associação RosaPão, a minha casa na Roça – que me preenchem e me fazem ter uma vida bem ocupada. E, parece inacreditável, mas ainda há muito para conhecer neste meu cantinho e há tanto… tanto para fazer.”

Estrela disse ao STP Digital que o que mais gosta do Príncipe são as pessoas. “Vale a distância da família que há dias que dói mais que outros, vale a falta daquilo que um dia achámos importante, vale as frustrações com o leve leve e com uma produtividade tão diferente daquela que eu estava habituada. Mas tudo isso é irrelevante quando conseguimos ver o resultado dos nossos esforços, vemos que estamos a fazer a diferença e sentimos que por nossa causa, melhorámos a vida de algumas pessoas e sentimos que aqui somos importantes, o nosso melhor é recompensado. Em Portugal, ou noutro sítio qualquer, eu seria só mais uma no meio de milhares.”

A bióloga adora segurança que a tranquilidade da ilha proporciona. “Onde é que eu podia viver num sítio tão seguro, onde todo o mundo se conhece, onde as crianças me cumprimentam com abraços ou me chamam Estrelinha e, ainda por cima, com as paisagens mais bonitas do mundo? Só mesmo no Príncipe.”

Mas nem tudo são rosas. Atenta a tudo que se passa à sua volta, a bióloga constatou que existe ainda um ciclo de violência. “O homem bate na mulher, a mulher bate na criança, a criança bate no cão, o cão morde o homem… Todos os níveis deste ciclo me custam horrores não conseguir mudar. Eu acredito que este ciclo se quebra empoderando as mulheres. Mulheres mais independentes, conscientes e fortes não se deixarão agredir nem reduzir por parceiros e criarão crianças que serão adultos menos violentos. Por isso que muito dos nossos projetos se focam exatamente no empreendedorismo femininos.”

Outra questão que a perturba muito é a situação dos cães. “Eu sempre fui uma apaixonada por cães, sempre os tive como melhores amigos e mesmo na Ilha – querendo fugir disso a todo o custo – fui conquistada e já tenho as minhas duas filhotas caninas. Mas a maneira como os cães são tratados, ouvir cães a ganir todos os dias, sentir-me impotente quando um cão é atropelado e não há nada que possamos fazer na Ilha… custa-me muito. Sinto um aperto no coração cada vez que vejo cães a atravessar uma estrada, e sinto-me frustrada com as crianças que continuam a achar que é aceitável atirar pedras, dar chicote… mas como é que não haviam de o fazer quando veem os pais a atirar pedras, a dar chicotes, a atirar óleo a ferver, a dar pontapés… Nós tentamos fazer o que podemos. Ensinamos, sensibilizamos, damos exemplo, mostramos como cães felizes – como os nossos – podem e são os nossos melhores amigos… Ainda há muito por fazer, mas sem dúvida que a situação está muito melhor do que estava há 6 anos.”

 Como Diretora Executiva da Fundação Príncipe Trust, uma ONG de Conservação da Natureza, Estrela gere uma equipa de 47 funcionários e 13 projetos.

“Implementamos projetos de conservação marinhos e terrestres sempre com foco no desenvolvimento económico e social das comunidades, trabalhando para que percebam o valor da biodiversidade e que fazem mais dinheiro protegendo os recursos naturais e utilizando-os de forma sustentável, do que matando e destruindo. Trabalhamos para mostrar que é possível atingir o equilíbrio entre o homem e a natureza, preservando a riqueza biológica de uma Ilha única e sem comparação, ao mesmo tempo que asseguramos as condições necessárias à melhoria de qualidade de vida das comunidades.”

A CVR – Cooperativa de Valorização de Resíduos, da qual é co-fundadora, tem um projeto de reciclagem de vidro. “Temos um grupo menos reduzido de senhoras do que inicialmente começaram na cooperativa, mas as que estão têm sido forças motoras que tornaram este projeto o sucesso que é hoje. Neste momento temos a produção de joias únicas e originais feitas da reciclagem de garrafas de vidro da Ilha em ponto rebuçado. Cada vez fazem peças mais bonitas, que até a mim me surpreendem pela criatividade e originalidade. Todos os dias recebem turistas na fábrica, que vão conhecer o projeto, comprar jóias, e temos já dois sítios em São Tomé com as jóias.”

A CVR também produzia composto orgânico, mas o projeto está parado porque o telhado do centro de compostagem caiu devido a uma tempestade.

“Este ano tivemos o ponto alto do prémio Terre de Femmes da Fundação Yves Rocher, que nos permitiu ganhar o primeiro prémio e comprar a carrinha para a cooperativa, para que possam ir apanhar lenha, recolher resíduos, vender jóias nos hotéis e aeroporto e ganhar a independência necessária. Além disso, a publicidade do projeto assegurou-nos uma parceria com uma loja de comércio justo que tem as nossas joias à venda online por toda a Europa.”

10 famílias vivem apenas da reciclagem de vidro e da produção de composto na Ilha do Príncipe. “Além dos membros da cooperativa, têm um jovem empregado e por isso este projeto está já a tornar-se também numa perspetiva de emprego para jovens da Ilha, principalmente para estimular a criatividade e a imaginação, além de apoiar o turismo na região que está a crescer a olhos vistos e que procura projetos originais e que beneficiem as comunidades.”

Perguntamos-lhe sobre o papel da biodiversidade na economia. “Aquela famosa frase da Greenpeace: “Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que dinheiro não se come”, resume de maneira genial a importância desta questão. Cada vez mais se percebeu que o papel da biodiversidade na economia é crucial à nossa sobrevivência.”

Para a bióloga, podemos e devemos quantificar o valor da biodiversidade para a economia, através do uso que se faz dos recursos. “Há o valor do uso direto da biodiversidade – consumo de carne, peixe, frutos, sementes, etc. Todos nós sabemos o que pagamos pela comida que comemos. Sabemos o que pagamos a água que consumimos, que é cada vez mais.”

“Além da utilização direta que é feita da biodiversidade – alimentos, medicamentos, produtos madeireiros, etc. – a biodiversidade garante também o equilíbrio do planeta, permitindo, por exemplo, que pragas não se proliferem no ambiente e que não ocorra alteração no volume de chuvas, como cheias e enxurradas que causam problemas sociais enormes”, disse Estrela.

A oradora do TEDxSãoTomé 2018 falou ainda do valor do uso indireto da biodiversidade, como o turismo, que em São Tomé em Príncipe tem ainda um peso maior na economia, e também no valor do sequestro de carbono que as florestas fazem, diminuindo as emissões de carbono, consequentemente melhorando o ar que respiramos.

“Outro importante exemplo do valor económico indireto da biodiversidade é a pesquisa científica que se traduz em, por exemplo, medicina para consumo humano. Está na hora de começar a compensar de forma justa a riqueza gerida da utilização dos recursos naturais e da biodiversidade, aplicando os fundos necessários à preservação da biodiversidade e do planeta. No Príncipe trabalhamos para mostrar exatamente isto às comunidades. Que uma tartaruga viva vale mais que uma morta, pois uma tartaruga viva pode subir à praia 5 vezes para desovar numa temporada, e por isso podemos “vender” essa tartaruga 5 vezes por ano aos turistas que nos visitam, e todos os ovos que nascem e sobem para o mar são depois tartarugas que podemos novamente “vender” como atração e aumentar o nosso rendimento.”

Salienta ainda que “Enquanto que se matarmos uma tartaruga fazemos o dinheiro imediato da carne e pronto, acabou aí. Por isso, o valor arrecadado com as visitas dos turistas em cada temporada da desova das tartarugas é distribuído pelas três comunidades com melhores práticas e mais integração com a proteção da biodiversidade.”

Criaram também os trilhos da biosfera e a associação de guias para mostrar que é possível utilizar o Parque Natural de forma sustentável e responsável, e que se preservarmos a nossa biodiversidade temos muito mais para vender aos turistas.

Sobre o convite para ser oradora no TEDxSãoTomé, Estrela confessou que foi um momento muito especial. “Senti-me muito honrada com esta oportunidade de falar sobre a temática da Re|Evolução, porque me sinto, e sempre me senti, re|Evolucionária. Uma das revoluções que eu comecei o ano passado, e na qual me sinto uma autêntica guerreira, é a minha luta para conseguir viver com desperdício zero, desplastificando a minha vida. Vou partilhar então esta minha mudança de vida e de comportamento como consumidora, esperando inspirar aqueles que me irão ouvir a caminharem neste trilho sem plástico comigo, não só para o bem da nossa saúde, do nosso país e Ilhas, mas de todo o planeta.”

 Se tivesse o poder de ler pensamentos, o que faria? “Ui…Acho que este seria o pior poder de sempre…. Acho tão importante termos direito à nossa privacidade, principalmente intelectual e considero ser essencial para o bem comum da sociedade sabermos filtrar as informações e opiniões que passamos ao outro…. Sobretudo porque já vejo esta leitura de pensamentos acontecer atualmente nas redes sociais, onde toda a gente diz o que pensa sem filtros e sem consequências… Às vezes assistimos a pessoas, que faziam parte da nossa vida, com comentários racistas ou xenófobos, ou até ridiculamente estúpidos que, muito sinceramente preferíamos não saber….

Mas tentando fazer este exercício, em que é que ler pensamentos poderia ser útil, não consigo deixar de me lembrar do trabalho que fazemos com as comunidades. Lendo os pensamentos conseguiríamos compreender mais ao detalhe as preocupações de cada pessoa tem e ter uma melhor perceção se o trabalho de sensibilização e consciencialização de facto está a ser compreendido e apreendido pelas comunidades, e adaptar o nosso trabalho de maneira a ter mais e melhores resultados.”

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